sexta-feira, 3 de outubro de 2008









O Navio Negreiro

(Tragédia no mar)


I


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar...

Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

— Constelações do líquido tesouro...


'Stamos em pleno mar...

Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...



'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...


Donde vem? onde vai?

Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço


Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo — o mar em cima — o firmamento...

E no mar e no céu — a imensidade!


Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!

Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à toa!


Homens do mar! ó rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que a procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!


Esperai! esperai! deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia,

Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,

E o vento, que nas cordas assobia


Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar — doudo cometa!


Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas,

Leviathan do espaço,

Albatroz! Albatroz!

dá-me estas asas.



II


Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

As vagas que deixa após.


Do Espanhol as cantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente,

— Terra de amor e traição,

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso,

Junto às lavas do vulcão



O Inglês — marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou,

(Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glórias,

Lembrando, orgulhoso, histórias

De Nelson e de Aboukir.. .

O Francês — predestinado

— Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir!


Os marinheiros Helenos,

Que a vaga jônia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu...

Nautas de todas as plagas,

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu!...



III


Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais...

não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí...

Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ...

Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil...

Meu Deus! Meu Deus!

Que horror!



IV


Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...



Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!


E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais ...

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala.

E voam mais e mais...


Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!



No entanto o capitão manda a manobra,

E após fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."


E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...



V Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!



Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...



São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão...



São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também.

Que sedentas, alquebradas,

De longe... bem longe vêm...

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N'alma — lágrimas e fel...

Como Agar sofrendo tanto,

Que nem o leite de pranto

Têm que dar para Ismael.



Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram crianças lindas,

Viveram moças gentis...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus ...

...Adeus, ó choça do monte,

...Adeus, palmeiras da fonte!...

...Adeus, amores... adeus!...



Depois, o areal extenso...

Depois, o oceano de pó.

Depois no horizonte imenso Desertos...

desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p'ra não mais s'erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer.



Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro,

fundo, Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...



Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer. .

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente

— Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!...



Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!...



VI


Existe um povo que a bandeira empresta

P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus!

mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto!...

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,




Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ...

Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!




São Paulo, 18 de abril de 1869.

(O Poeta, nascido em 14.03.1847,

tinha apenas 22 anos de idade)

http://www.secrel.com.br/jpoesia/poesia.html







6 comentários:

Anônimo disse...

Papillon,

O que eu faço com você??? Como posso comentar isso?? Desafio!! ADORO DESAFIOS!! Rss

Bem, como disse antes, não é o meu poeta favorito nem tudo nele, me é querido. Este poema que Papillon selecinou talvez seja aquele, que dele, todos devemos conhecer até para não esquecer...

Ninguém melhor do ele cantou as dores que a escravidão deixou...

Charlotte disse...

Papi... Papi...Vc antecipou...Esse era um de meus pedidos ... Já que tenho fama de pidona...kkk

Na leitura de cada estrofe um arrepio me percorreu o corpo...

Ninguém Bel, ninguém escreveu os gritos vindos da África como Castro Alves.
Navio Negreiro... certa vez fiquei estática diante de um ator, amador sim mas, não em seu talento... Ele declamou esse poema com uma expressão de verdade e dor tão grande, que me chocou. O fez com tanta segurança , que nem se viu atrapalhado pelo tamanho do texto ou pela dificuldade do vocabulário... Cada vez que leio Navio Negreiro, me emociono pela história que ele conta. Aí me lembro do moço... Grata pela oportunidade...

Parbéns... Adoro esse espaço... Estou sempre por aqui...só que nem sempre dá pra dizer ...oi

Beijos.

Papillon disse...

Oi, meninas!!

Que lugar gostoso e com a participação de vc tá ainda melhor...sinto falta do oho que tudo V...será que esse olhar passa aqui também kkkk

Entaõ seu pedido foi atendido, Charlotte...venha aqui sempre..com ou sem Oi!!

Bel, já estou pensandop no outro para ess semana...aguarde!!

Beijocas.

vivi disse...

Uau!!!...bem que vc disse que seria grande hein! dona Papi... ainda bem que não foi só no tamanho rsrs... mas e principalmente na grandiosidade do sentimento.
Minha amiga vai amar rsrs... ela já havia comentado comigo sobre esse poema...
O que farei... como ela está sem pc... hehehe... tirarei se me permitir duas copias... para que possamos aprender juntas a arte da interpretação..rsrs...
Beijus...

Papillon disse...

Oi, Vivi!

Como alguém nesse seu país não tem PC...o lugar da tecnologia....mas pode fazer quantas copias desejar...o objetivo e passar a cultura...a casa é sua e dela também....
Bjs.

vivi disse...

rsrs... né Papi, é verdade, ela tem... mas disse-me q está quebrado, então a vivi aqui vai fazer essa gentileza rsrs... Obrigada! pelas cópias rsrs...
Vou falar para ela comprar logo em pc né.... rsrs...
Beijus...