sexta-feira, 24 de junho de 2011

Soberania - Manoel de Barros

Ganhei um dia no meu trabalho um livro caixa: uma caixa amarrada por uma fita amarela. Dentro, as paginas soltas eram um desafio feito à memória do autor. Fiz a leitura no mesmo dia que ganhei e o guardei...guardei...guardei e foi atendendo ao pedido de uma amiga, na busca de alguns escritos do autor que reencontrei o livro tão bem guardado e também reencontrei as minhas memórias da leitura do livro. Memórias essas não da minha infância, mas da minha leitura dos textos "Memórias Inventadas" de Manoel Barros.


 Memórias Inventadas - A Terceira Infância - Manoel de Barros
A série "Memórias Inventadas", concluída com a publicação desta "Terceira Infância", resultou de um desafio proposto ao poeta escrever sua autobiografia. Seus pequenos contos transportam o leitor para o tempo em que as crianças construíam seus próprios brinquedos. Texto e imagem se completam, compondo um cenário único.
Soberania
Manoel de Barros

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito e eu não consegui
pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso
carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos
deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado
e disse que eu tivera um vareio da imaginação.
Mas que esses vareios acabariam com os estudos.
E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li
alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.
E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria
das ideias e da razão pura. Especulei filósofos
e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande
saber. Achei que os eruditos nas suas altas
abstrações se esqueciam das coisas simples da
terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo
— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:
A imaginação é mais importante do que o saber.
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei
um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu
olho começou a ver de novo as pobres coisas do
chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E
meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam
o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no
corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas
podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania
nem pra ser um bentevi.

Texto extraído do livro (caixa) "Memórias Inventadas - A Terceira Infância",
Editora Planeta - São Paulo, 2008 com iluminuras de Martha Barros.

sábado, 11 de junho de 2011

Variação Linguística: Por uma vida melhor.

Muita gente comentou sobre a polêmica em torno do livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, adotado pelo MEC. Minha caixa de e-mail lotou. Foram muitas pessoas se colocando contra o livro sem saber do que se tratava.
Abrir revistas, jornais, entrei nas minhas redes sociais e o assunto era o mesmo.
Não queria ser mais uma e pegar o “bonde andando”.  Fui em busca do livro, de quem afinal fez a leitura e que sabia o que estava acontecendo.
Foi pensando nesses e-mails e nas notícias publicadas de uma forma descontextualiza que resolvi publicar  aqui um desabafo de alguém que tem conhecimento de causa e que se coloca bem articulada e conhecedora do assunto.
Com isso darei meu ponto final a essa polêmica.
Liane Castro de Araujo, doutoranda em educação (Faced/Ufba), supervisora de Escrita e Leitura da Via Magia permitiu aqui a publicação do seu desabafo:
Gente,
Li muitas coisas, ouvi muitas coisas, muitos argumentos – bons argumentos – de um lado e de outro da questão. E muita besteira também. Resolvi dar minha opinião.
Antes de tudo é preciso ler o tal capítulo do livro que gerou tanta polêmica a respeito do ensino da língua. Muita gente comentou Brasil afora, na mídia, na mesa de bares, nas escolas, nas redes sociais, sem ao menos tê-lo lido, criticando só a partir de frases tiradas de seu contexto e dos famosos achismos tão caros aos que não são da área. Por que será que temos esse gosto pelas dicotomias, polaridades, falsas polêmicas? Por que tudo vira um ringue entre os que acusam e os que defendem ardorosamente uma causa? Não podemos, como educadores que pensam a linguagem, cair na armadilha dessa dicotomia tosca que se criou.
E o engraçado é que o livro propõe justamente o ensino da gramática, da norma culta da língua...
Talvez a autora tenha, de fato, sido infeliz – até ingênua, talvez – no modo de colocar certas coisas, talvez até superestimando a capacidade dos seus leitores em compreender a questão em toda sua complexidade. Talvez ela tenha passado rápido demais pelo tema, não distinguindo a fundo a norma escrita e a falada, a norma ideal da gramática (que ninguém fala, nem os letrados) e a norma real, o padrão e o culto, a gramática e a língua. Talvez ela tenha sido apressada no trecho que indica que “claro que pode falar assim”, considerando a complexidade da questão e a delicadeza do tema para quem não é da área e não acompanha as discussões sobre a variação linguística. Acho que ela não pensou que pudesse ser tão chocante para uns, algo tão já discutido no meio linguístico. Talvez. Talvez ela pudesse ter sido mais cuidadosa na transposição do que é saber da linguística e o modo de abordar, no ensino, a realidade da existência de variedades faladas (para ensinar a norma, diga-se de passagem). Mas daí a essa reação apaixonada contra o que ela trata no capítulo, me parece mais equivocada ainda. Caímos de novo naquela de que a gramática, a norma culta, etc, etc, são tesouros intocáveis, quase divinos? Precisava tanta inflamação?
Acho que é preciso sim reconhecer as variedades, sua legitimidade como língua portuguesa, para partir daí para o ensino da linguagem valorizada socialmente. Só assim milhares de alunos serão reconhecidos como falantes do português, embora passem a tomar consciência de que sua variedade não tem muito prestígio social. Vão aprender sabendo o porquê de aprender, não achando que é porque não falam português. Acho justíssimo sim, esse tema ser tema de estudo da área de linguagem na escola, se a escola é para todos.
Marcar de forma redundante o plural numa frase, como faz a língua portuguesa, não é necessariamente a única forma de marcar plural e isso pode até mudar, como já mudou em várias línguas, argumento que, evidentemente, não invalida a norma atual da língua culta. Talvez a autora tenha se apressado no modo de fazer suas colocações, mas sua perspectiva é a da ciência linguística. Não concordo que haja uma separação estanque entre a ciência linguística e a prática educativa. Fosse assim, não teria havido mudanças essenciais no ensino da língua a partir dos estudos da língua nas últimas décadas. Há a tal “transposição didática”, evidentemente, não se trata de uma aplicação direta. É evidente que os conhecimentos linguísticos, descritivos da língua, não são para serem, todos, repassados para os alunos tal e qual. Saber como funciona e ensinar, realmente, não são a mesma coisa. Mas também não são objetos estanques, impermeáveis. Parece-me essencial a contribuição da sociolinguística desde os anos 70 e da linguística contemporânea para o ensino da língua hoje e, mais ainda, junto com isso, para a mudança de atitude quanto ao tratamento das questões de linguagem na escola. Em especial o tratamento dado em relação às variedades faladas pelos alunos, o modo como os acolhemos na escola. A língua culta não é um tijolo maciço estanque, inquebrável, imutável e intocável. E é assim que ela tem aparecido na mídia!
De novo vemos os burgueses letrados tremerem de medo do falar de grande parte do povo brasileiro, por esse falar estar explicitado em um livro, outro objeto intocável, símbolo do que é mais culto! Nossa, que heresia, heim?!!!
O livro em questão, no entanto, não prega falar “errado” nem ensinar aos letrados as variedades não cultas da língua para que possam falá-la também. Que despautério desses que foram à TV afirmá-lo! E como se pode constatar ao lê-lo, curiosamente, o livro pretende, justamente, ensinar a norma culta. Colocar as coisas nos seus lugares é muito saudável, inclusive destronando a norma culta de um trono imaculado, com a faixa “língua portuguesa” atravessada no peito, acho que é isso que a linguística faz, e que o livro acusado tentava fazer.
O que os linguístas discutem hoje, de sua perspectiva descritiva da língua falada, não pode ser ignorado pela escola. Especialmente a escola pública, que recebe alunos que falam variedades bem distantes da norma culta. Isso já sabemos. Os modos de fazê-lo podem, esses, ser discutidos, sim, concordo. Não ensinar a norma culta é reafirmar o fosso, concordo. A própria autora do livro, sem dúvida, sabe disso. Ninguém está pregando “cada um no seu quadrado”!!! Mas ignorar o fenômeno da variação é uma injustiça ainda maior. Reconhecer a variedade e conceber a norma como uma variedade de prestígio – e que o é por razões diversas, inclusive históricas, sociais, políticas – é um primeiro passo para uma atitude de não preconceito, que me parece, é papel da educação. Aliás, é bom lembrar, a expressão “preconceito linguístico” não foi um delírio cunhado por essa autora em especial, como muitos estão dizendo, mas faz parte do campo conceitual da ciência linguística. Não dá para separar de todo linguagem, educação e poder. Não é possível que, com tudo que sabemos hoje sobre a história da constituição de uma língua padrão, sobre fenômenos e mudanças linguísticas, continuemos tratando a norma culta como “a língua portuguesa” e as demais variedades todas como distorções dela. E é esse trono que está sendo propalado pela mídia.
Porque ninguém se incomoda que hoje se fale a palavra “balde” como /baudji/ e não como /balde/, como falava meu avô e uns poucos de cabeça branca que ainda restam vivos? (tentar falar assim, para nós, hoje, faz uma dobra na língua que parece até inglês!!!). Porque não incomoda os defensores da língua culta que uma moça bem letrada diga a seu marido, filho ou a seu funcionário: “Benhê, traz um copo d’água, por favor. Você traz?”, "João, leva esse livro pra estante, tá?", “Filho, vem cá! Você quer jogar?”. Por que para os letrados a tolerância é maior? O letramento permite que todos se policiem para usar a norma culta nas situações sociais em que esta é exigida. Para falar “se eu vir...”, “assisti ao filme...” muitos de nós temos que nos policiar (ao menos enquanto a língua não mude nesses aspectos), e relaxamos entre amigos, não? Por que toleramos as diferenças entre norma ideal e real quando quem abre a boca é de uma camada mais culta da sociedade? E por que incomoda tanto os que dizem “Eu toco frauta muito bem”? O preconceito linguístico é sim, antes de tudo, preconceito social. Acredito nisso sim! Isso nós precisamos, como educadores, ter em mente e combater a cada dia. E é a linguística que pode nos dar essa dimensão (ainda que, por vezes alguns também relativizem demais a questão, do ponto de vista da educação). Não podemos ignorar esse fato, ao preço de mascararmos a questão do poder que está entranhada nas questões de linguagem. Até porque o grande Camões não só falou, como escreveu frauta em seu texto mais famoso. E por quê? Por que a língua muda! E porque só valem as mudanças estabelecidas pelas camadas sociais mais prestigiadas? Precisa responder? Acho que não, né? Aliás, não fosse esse tipo de fenômeno linguístico nem haveria língua portuguesa! O certo é que esses fenômenos existem e são eles os responsáveis por formar as línguas, além de modificá-las (não necessariamente deturpá-las, como querem alguns).
Bom, isso tudo evidentemente não quer dizer que não seja para ensinar a norma culta escrita, e até mesmo a falada. Por questões sociais, sim, e em especial pelo direito ao acesso à língua em que se registram os textos escritos na nossa sociedade. Todo o livro da autora massacrada é isso, para ensinar a norma culta da língua!
Ainda que essa repercussão do livro possa também gerar uma discussão fecunda, estou com Faraco, Possenti, Magda Soares, até mesmo Marcos Bagno, dentre outros, que reconhecem nessa querela toda uma falsa polêmica, uma polaridade absurda, estanque e que, feita dessa forma tão inflamada, penso eu, é burra. A complexidade da questão não cabe em cinco minutos de noticiário no jornal e nos melindres de defensores ardorosos da redoma de vidro inquebrável da norma culta, que desconhecem a própria dinâmica das línguas
Toda polaridade absoluta é burra.
Estou também com Bakhtin, para quem há na linguagem, como na vida social, forças centrípetas que tendem para a conservação, a homogeneização e forças centrífugas que impelem para o descentramento, a transformação, a diversidade. Essa tensão entre elas permeia o movimento incessante da linguagem. É a dinâmica da linguagem, da língua, da vida!!!
É como penso.
Liane Castro de Araujo (Lica)

domingo, 5 de junho de 2011

Poema Falado - Quadrilha

O amor por vezes é paixão, por vezes é alegria, por vezes, solidão. O amor por vezes é tudo, por vezes, nada. Há momentos em que o amor se converte em magníficos encontros. Em outros, porém, o amor é só desencontro, tristeza, morte. Talvez o amor seja mesmo um grande labirinto repleto de vias estreitas e encruzilhadas perfeitas. Para homenagear o amor no mês em que o amor homenageia os enamorados, o Poema Falado de junho traz o texto QUADRILHA, do sempre magnífico Carlos Drummond de Andrade, que diz: “João amava Teresa / que amava Raimundo / que amava Maria / que amava Joaquim / que amava Lili / que não amava ninguém. // João foi para os Estados Unidos / Teresa para o convento / Raimundo morreu de desastre / Maria ficou para tia / Joaquim suicidou-se / e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história”. Boa leitura audiovisual!




Imagem: Eros e Psique, por François Gêrard.